domingo

"Acordar de manhã e olhar-me ao espelho. Ver-me ali, quieto, mudo, de gesto igual a todos os dias. A mesma imagem repetida, o mesmo rosto, a mesma face bucólica, a lâmina fria e afiada apontada a mim ,da minha gilete, em quem já não confio. Eu aqui, ainda eu, a passar as mãos por todo o corpo e a desejar-te neste suado reflexo. Quantas caras estranhas, quantos sorrisos benignos, quanto ânsia em te ter na palma desta mão onde agora escorre a herança de um sonho só meu. O futuro desfaz-se na água e não dentro de ti. O futuro foge-me, corre viscoso, libertino, devasso, por entre o pequeno ventre da minha banheira. Dizem-me que o futuro, este futuro de que te falo, tem sabor a sal, um estranho ácido - dizem, uma especiaria rara que celebra e exalta essa coisa a que a chamamos desejo.Está a ficar frio aqui ou então sou eu que gelei mesmo com calor lá fora. Não me sinto, sei que existo porque ainda não perdi a coragem de olhar para este espelho, mas não me sinto, nada, não me sinto nada, apenas me olho e chego-me mais perto desta imagem imóvel, agora mais serena, húmida, onde despejo todo o vapor que guardei na minha boca para te desenhar com pormenor. Primeiro, o teu nome. Depois, o teu corpo, os teus lábios carnudos de batôn rosa-shock, os teus olhos muito redondos, os teus cabelos, a tua alma que patina alegre com o meu vapor. Que linda que estás, que bom seria se não te derretesses e ficasses sempre aqui, no estado sólido e não liquido, neste vapor quebradiço onde agora arrasto a língua, demente, ímpio, saboreando a água fresca que me vem de ti."

excerto do livro "No dia em que fugimos tu não estavas em casa", de Fernando Alvim

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